A tela se abre e aparece a imagem de várias crianças negras, meninos e meninas. Na frente delas duas bonecas: uma branca e outra negra. No fundo uma voz de homem faz as perguntas: qual das bonecas é negra, qual é bonita, qual é má, qual é legal, qual é feia e finalmente, qual era a que se parecia com a criança questionada. Para todas as questões que se remetia a beleza e gentileza as crianças, meninos e meninas, apontavam para a branca e quando questionadas sobre o porquê, elas respondiam porque as bonecas eram de pele branca e olhos azuis. Para as perguntas que se referiam a cor, maldade e feiúra, estas associavam as bonecas negras. Esse vídeo tem duração de 1’08 e circula no canal Youtube.com desde março de 2009, com mais de 210 mil acessos.
Esse vídeo nos remete a uma discussão que não encontra espaço nos periódicos tradicionais e só pode ser aqui comentado por conta de mecanismos alternativos de comunicação. Afinal estamos falando de temas muito caros para a sociedade brasileira e que não necessária e intencionalmente está na “boca do povo”, mas existe de forma cada vez mais sutil. Estamos falando de racismo, mídia e infância na sociedade brasileira e como a construção simbólica do um modelo do que pode ser o belo desencadeia e reafirma o racismo.
Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, em 2004, 87% dos brasileiros reconheciam o racismo no país, mas apenas 4% se reconhecia como racista. No entanto, há algumas semanas, em Belo Horizonte, uma menina negra de quatro anos foi agredida pela avó de um menino branco que questionou, aos gritos e na frente de toda a sala de aula o porque de terem deixado o neto dela dançar quadrilha com “uma negra e preta horrorosa e feia”. A diretora da escola, que é particular, sequer fez qualquer gesto para evitar o crime, tampouco informou aos pais da menina o ocorrido. O caso só veio à tona porque a professora, que testemunhou tudo, inconformada com a situação, pediu demissão e denunciou à família da menina o que ocorreu. O caso está sendo apurado.
Nascemos preconceituosos ou nos tornamos preconceituosos?
Mas como uma pessoa se torna preconceituosa? Como uma pessoa se torna racista? Já é sabido que as crianças nascem sem qualquer conteúdo preconceituoso, como bem afirmou Nelson Mandela “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Os conceitos preconceituosos, sejam eles machistas e racistas, especialmente, bem como outros, são incutidos por meio de influências ou vivências com outras pessoas, especialmente no ambiente familiar e escolar. Não raro vemos crianças que, ao voltar da escola, apresentam “falas” que destoam do ambiente familiar, e que externam uma associação da cor negra com a sujeira. Outras seguem o caminho contrário, já chegam na escola com essas falas.
Daí a importância de pais, mães e educadores estarem atentos a estas questões. Pois é na infância que se dá o desenvolvimento dos valores, que são absorvidos com mais intensidade e também onde os estereótipos raciais vão sendo sedimentados. Neste momento é muito importante a atenção e o cuidado com os brinquedos e os programas televisivos que serão disponibilizados às crianças, especialmente por conta do conteúdo publicitário dirigido a elas. Segundo o Instituto Alana, organização não governamental de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes em relação ao consumo em geral, bem como ao excessivo consumismo ao qual são expostas, as crianças são mais vulneráveis que os adultos e sofrem cada vez mais cedo com as graves consequências relacionadas aos excessos do consumismo, por estarem em pleno desenvolvimento.
A influência da publicidade é percebida na escolha dos produtos, na maioria das vezes brinquedos e alimentos, que são feitos pelas crianças quando em contato com essas informações direcionadas e abusivas. Ao contrário dos meninos que são sempre desafiados a ultrapassar limites, explorar as habilidades do corpo e do espaço, às meninas são reservados os brinquedos que remetem ao cuidado com os outros seres, com os cuidados excessivos e precoces com o corpo, e não com elas mesmas, e à casa sempre em forma de castelo. Há sempre uma predominância da cor rosa, que é o delicado, em contraponto ao azul, que remete a fortaleza e conhecimento, dos meninos. Isso ultrapassa as cores das roupas e vai até a representação simbólica de diferenciação de gênero, apesar das diversas matizes de cores. E para além e juntando tudo isso a representação das bonecas, uma peça exclusivamente do feminino, com a definição de que o que é belo é o corpo magro e esguio, loiro, traços finos e olhos claros, ainda que sejamos um país marcado pela miscigenação. Dessa forma, sutil, pulverizado e constante, os conteúdos racistas e também machistas vão entrando nos lares brasileiros sem nem mesmo os pais e mães se darem conta.
E o Estado, onde está?
No entanto, um aspecto que merece toda a atenção da sociedade, uma vez que as crianças são seres prioritários para o Estado, com direitos assegurados na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente, são os efeitos que o racismo e a discriminação racial têm na infância de crianças negras. Para estas meninas e meninos o impacto da publicidade excludente é muito mais nocivo do que para as de cor branca. Isso é percebido na negação dos próprios atributos físicos como cabelos, pele e nariz, na negação da própria negritude explicitamente, num exercício de distorção da auto-imagem; ou ainda na rejeição da própria família devido à vergonha da aparência de seus entes.
Para a psicóloga Roberta Federico, as crianças reproduzem o que vêm no contexto social, de forma explícita ou velada. “Não é preciso que se diga explicitamente para uma criança que as pessoas negras têm menos valor que as pessoas brancas para que ela absorva essa ideia. Basta colocá-la diariamente diante de qualquer canal de TV brasileira, onde dificilmente ela se verá representada de maneira positiva”, explica.
Em cima disso, o Doutor em Comunicação pela ECA-USP e cineasta, Joel Zito Araújo, faz uma reflexão sobre as vantagens de se nascer branco e as desvantagens de se nascer negro no Brasil. “O espelho que é colocado diante de uma criança negra diz: ‘ Você é feio, você pertence a uma raça inferior, você é a imagem da pobreza, você está destinado à subalternidade’. Enquanto o espelho que é colocado diante de uma criança branca diz: ‘Você é lindo, você é superior, você é predestinado’”. No seu discurso de ideologia do branqueamento ele diz que a mídia exerce um papel fundamental na nossa não discussão sobre o tema do racismo.
No entanto, a discussão do racismo está posta na mídia só que em dois lugares, seja nos jornais, nas telenovelas, no cinema ou outros meios. O primeiro é o lugar da invisibilidade. E o segundo é o do rebelde, dos filhos rejeitados e excluídos, das empregadas domésticas, dos serviçais. Às crianças negras, são sempre as deseducadas, as sem inteligência, as ligadas à malandragem e que, atualmente aparecem apenas para cumprir o parâmetro da diversidade. Enfim, adultos e crianças sem quaisquer possibilidades de ascensão social. “Todos eles, portanto, são obrigados a incorporar na televisão a humilhação social que sofrem os mestiços em uma sociedade norteada pela ideologia do branqueamento, em que a acentuação de traços negros ou indígenas significa a possibilidade de viver um eterno sentimento racial de inferioridade, e uma consciência difusa e contraditória de ser uma casta inferior que deve aceitar os lugares subalternos intermediários do mundo social”, afirma Araújo.
Em cima disso, o Doutor em Comunicação pela ECA-USP e cineasta, Joel Zito Araújo, faz uma reflexão sobre as vantagens de se nascer branco e as desvantagens de se nascer negro no Brasil. “O espelho que é colocado diante de uma criança negra diz: ‘ Você é feio, você pertence a uma raça inferior, você é a imagem da pobreza, você está destinado à subalternidade’. Enquanto o espelho que é colocado diante de uma criança branca diz: ‘Você é lindo, você é superior, você é predestinado’”. No seu discurso de ideologia do branqueamento ele diz que a mídia exerce um papel fundamental na nossa não discussão sobre o tema do racismo.
No entanto, a discussão do racismo está posta na mídia só que em dois lugares, seja nos jornais, nas telenovelas, no cinema ou outros meios. O primeiro é o lugar da invisibilidade. E o segundo é o do rebelde, dos filhos rejeitados e excluídos, das empregadas domésticas, dos serviçais. Às crianças negras, são sempre as deseducadas, as sem inteligência, as ligadas à malandragem e que, atualmente aparecem apenas para cumprir o parâmetro da diversidade. Enfim, adultos e crianças sem quaisquer possibilidades de ascensão social. “Todos eles, portanto, são obrigados a incorporar na televisão a humilhação social que sofrem os mestiços em uma sociedade norteada pela ideologia do branqueamento, em que a acentuação de traços negros ou indígenas significa a possibilidade de viver um eterno sentimento racial de inferioridade, e uma consciência difusa e contraditória de ser uma casta inferior que deve aceitar os lugares subalternos intermediários do mundo social”, afirma Araújo.
Os números da violência
Apesar do país não se considerar racista, as pesquisas dizem o contrário. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2010, 54,5% de todas as crianças e adolescentes brasileiros são negras ou indígenas, ou seja, 31 milhões de meninas e meninos são negros e 140 mil são crianças indígenas. Vinte e seis milhões vivem em famílias pobres, representando 45,6% do total de crianças e adolescentes do país. Desses, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca.
No caso das mulheres, além das violações comumente sofridas pela condição de pobreza e outras, há aquelas situações de violência exclusivamente por serem mulheres, e isso insere as meninas. Segundo ela, nem todas as pessoas e nem todas as mulheres estão expostas à violência da mesma forma. Alguns grupos de pessoas têm muito mais chances de sofrer violência e, determinadas violências, que outros como é o caso de meninas e mulheres negras. O que caracteriza a sociedade brasileira enquanto ente machista, racista, elitista, heteronormativa, adultocêntrica, urbana onde os processos de violência e os impactos são vividos de maneira diferente pelas mulheres e são reveladores das condições de vida, bem como das circunstâncias a que estão submetidas enquanto sexo, raça, idade, lugar onde moramos, orientação sexual, etc.
No caso das mulheres, além das violações comumente sofridas pela condição de pobreza e outras, há aquelas situações de violência exclusivamente por serem mulheres, e isso insere as meninas. Segundo ela, nem todas as pessoas e nem todas as mulheres estão expostas à violência da mesma forma. Alguns grupos de pessoas têm muito mais chances de sofrer violência e, determinadas violências, que outros como é o caso de meninas e mulheres negras. O que caracteriza a sociedade brasileira enquanto ente machista, racista, elitista, heteronormativa, adultocêntrica, urbana onde os processos de violência e os impactos são vividos de maneira diferente pelas mulheres e são reveladores das condições de vida, bem como das circunstâncias a que estão submetidas enquanto sexo, raça, idade, lugar onde moramos, orientação sexual, etc.
No que se refere a violência física e sexual, embora o estudo “Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre igualdade de gênero 2010” realizado pelo IPEA tenha revelado que a maioria das pessoas entrevistadas considera que a violência contra a mulher é de responsabilidade da sociedade como um todo e que as agressões devem ser investigadas pelo Estado mesmo que a mulher não queira, dados do PNAD/IBGE apontam que 2,5 milhões de pessoas com mais de 10 anos de idade já sofreram algum tipo de agressão em 2009. Destas, pelo menos 40% eram mulheres e 1/3 delas foram agredidas por parentes, companheiros ou ex-companheiros, responsáveis por mais 25,9% do total de agressões [1].
Já pesquisa da Fundação Perseu Abramo realizada em agosto de 2010 revelou que a cada dois minutos cinco mulheres são agredidas violentamente no Brasil e que pelo menos 7,2 milhões de mulheres com mais de 15 anos já sofreram agressões desde 2001. No tema da exploração sexual, as vítimas desse tipo de crime, em sua grande maioria, são adolescentes entre 15 e 17 anos de idade, quase sempre negras ou indígenas, segundo Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres e Crianças para Fins Sexuais (Pestraf, 2001).
Tal situação reforça o pleito de parte da sociedade civil que vem discutindo os temas da violação de direitos de crianças, adolescente e mulheres de que é necessária uma presença, cada vez maior do Estado por meio de políticas públicas efetivas e contínuas. Por outro lado, faz-se necessário e urgente também reconhecer que as situações de violência não são questões a serem discutidas e resolvidas entre quatro paredes. Ela é um problema não da relação privada, mas uma questão pública e até civilizatória, porque não é possível o avanço de qualquer sociedade enquanto houver desigualdades entre homens e mulheres.
[1] Fonte: Chaga Social: 767 mulheres são agredidas por dia no Brasil (http://mariadapenhaneles.blogspot.com/2011/02/chaga-social-agressao-de-mulheres.html capturado em 29.02.2011)
P.S.: Este texto está participando do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento e foi publicado inicialmente no Infância Livre de Consumismo